domingo, 4 de setembro de 2011

Tradições e rupturas do Xingu

No aniversário de 50 anos do Parque Indígena do Xingu, índios discutem conquistas e desafios desse território único em meio a rituais ancestrais e modernas tecnologias

Texto Natália Martino

Do caule oco das taquaras sai um inconfundível som grave que confere ritmo ao cotidiano da Aldeia Ipavu, do povo camaiurá. No ar, o cheiro forte do urucum guardado em cuias para ser aplicado aos olhos das mulheres e aos corpos dos homens. Vindos de diversas partes do Parque Indígena do Xingu, mais de 500 índios dos estimados 5 mil que vivem nesta área, representando 16 etnias, reuniram-se, em junho de 2011, para discutir os significados da demarcação do maior território indígena do Brasil. Eles chegaram ao parque, que tem uma área equivalente ao estado de Alagoas, navegando pelos rios da região, um labirinto de água no meio da Floresta Amazônica.
Câmeras de vídeo espalhadas pela aldeia estão prontas para registrar os debates e as apresentações rituais a serem realizadas sob o sol sufocante dessa região do Mato Grosso. Atrás delas, procurando o melhor enquadramento, homens nus exibem formas geométricas pretas e vermelhas desenhadas nos corpos com tintas de jenipapo e urucum.

À primeira vista, as câmeras surgem como elementos deslocados daquela cena, que se completa com o fundo das grandes ocas arredondas e cobertas de palha. Mas não são. Elas combinam com a antena parabólica mais adiante e com os relógios que, em alguns pulsos, competem com os desenhos. Músicas entoadas nas línguas dos caiabis, dos uaurás e de outras etnias que participam da festa são acompanhadas pelo som dos chocalhos, que agora não são mais feitos com sementes de pequi e, sim, com alumínio. Amarradas nos braços, nas pernas e nas cinturas, linhas de tecido coloridas - verdes, azuis, vermelhas - substituem o algodão cru tingido com urucum que fazia parte da indumentária tradicional. Muda, assim, a tonalidade dos rituais. Nos pescoços, colares de sementes, de tucum e, o mais precioso de todos, de conchas de caracol rivalizam com outros, feitos com miçangas.

Sejam quais forem os materiais que hoje adornam os corpos, porém, as músicas ainda falam dos mitos de criação e dos princípios que explicam o mundo de forma peculiar.
A tecnologia ainda não destruiu as crenças desses povos. "Produzimos vídeos para revitalizar nossa cultura. Com esse material, ensinamos nosso modo de vida para as crianças e ainda captamos recursos para nossos projetos", conta Kamikiá Kisedje, coordenador da produtora indígena Aik Produções. Durante os dias de festa na Aldeia Ipavu, entre uma música e outra, depois de rodas de conversa com caciques, pajés e lideranças jovens, os presentes assistem a vídeos produzidos pelas várias etnias. Projetados no centro da aldeia, eles mostram rituais importantes ou contam histórias de ficção que revelam, em seus roteiros, vários elementos do cotidiano indígena.

Encontro entre dois mundos

Índios e brancos interagem nessa região do Brasil desde o século 18. Os primeiros encontros, ocorridos na época dos bandeirantes, foram trágicos. A ordem era capturar e matar os índios. No fim do século 19, o etnógrafo alemão Karl Von den Steinen tornou-se o primeiro branco que chegou "em paz" à região. Várias expedições científicas e militares se seguiram, com resultados devastadores. Em 1940, a população indígena da região já havia sido reduzida de 3 mil no início do século para 700 pessoas, principalmente por conta das epidemias levadas involuntariamente pelos brancos.

Horizonte Geográfico n. 136, ago., 2011, p. 28-40

Instituto de Pesquisa Etno Ambiental do Xingu

Kuarup é um ritual dos grupos indígenas do Parque do Xingu para homenagear os mortos. Os troncos feitos da madeira “kuarup” são a representação concreta do espírito dos mortos ilustres. A festa corresponderia a cerimônia de finados do homem branco, entretanto, o Kuarup é uma festa alegre, afirmadora, exuberante, onde cada um coloca a sua melhor vestimenta na pele. Na visão dos índios, os mortos não querem ver os vivos tristes ou feios.

Descrição do Kuarup da tribo Kuikuro – Região do Rio Kuluene Uma cerimônia de mais profundo sentimento humano realizam os Kuikuro no mês de maio de cada ano e sempre em uma noite de lua cheia. Num cenário fantástico, os índios desta tribo, convidam as tribos amigas para evocarem juntas, as almas dos mortos ilustres. Ainda noite, trazem da floresta vários toros de madeira, conforme o número dos que desapareceram, que vão ficando em linha reta no centro do terreiro em frente às malocas onde são recortados na forma humana de cada um e pintam neles as respectivas insígnias que em vida os fazia distinguir pajés, guerreiros, caçadores ou até mesmo aqueles que maior descendentes legaram à comunidade.

Enquanto são executados estes trabalhos, alguns homens com arco e flechas entoam hinos aos mortos. Preparação do tronco - kuarup Tudo pronto, aos gritos de há-ha, vão os homens às malocas e de lá voltam acompanhados das mulheres e crianças. As mulheres, de cabelos soltos, trazendo algumas frutas e guloseimas, em largas folhas de palmeira, outras, ricos cocares, plumagem de coloridos vivos, braceletes e colares, aproximam-se em passos harmoniosos dos kuarupes e em voz baixa como um sussurro, travam com eles um pequeno diálogo em que parecem exprimir toda a gratidão, falando-lhes das saudades que deixaram, oferecendo-lhes ao mesmo tempo os frutos e guloseimas, e enfeitando-os com os ricos cocares, as plumas, os braceletes.


Quando a noite chega, os homens trazem da floresta archotes de palha incendiados, cuja luz violenta faz luzir os corpos untados de urucum em reflexos metálicos que desenham toda a beleza dos seus músculos.


Dança do Fogo Primeiro em passos cadenciados depois em um crescendo cada vez maior, ao ritmo do chocalhar dos maracás e das canções místicas, até se fazer ouvir a voz do pajé, numa evocação a Tupã, implorando fazer voltar à vida aqueles mortos ilustres. Neste exato momento a lua cheia se encontra em seu máximo esplendor. Terminando a evocação os homens se dispersam pelo terreno em pequenos grupos, enquanto só o pajé continua a entoar as suas loas até o alvorecer. De novo voltam as mulheres para ouvirem os cânticos que lhes anunciam ter o sol feito voltar à vida os mortos ilustres.

Então começa a dança da vida e é executada pelos atletas da tribo, cada um trazendo ao ombro uma longa vara verdejante, símbolo dos últimos nascidos na comunidade. Os atletas formam um grande círculo correndo em volta dos kuarupes ao mesmo tempo que em gestos e curvaturas os reverenciam. Depois o grande círculo se divide em dois e logo cada qual se dissolve em vários grupos representando a sua respectiva tribo.


Huca-Huca É um momento de intenso silêncio, homenagem a estes últimos nascidos. Finda a homenagem, as diversas tribos executam uma luta que denominam “Uka-uka*” uma espécie de luta romana. Encerram a cerimônia em que os Kuarupes são, em festiva procissão, levados para o rio, e lá, entregues às suas águas.


-------------------------------------------------------------------------------- 1. Índios – Suplemento Especial. Encarte do Jornal Radical, produzido em parceria com a FUNAI – Fundação Nacional do Índio. Abril de 1997. 2. Danças do Brasil / Felícitas. - Rio de Janeiro: Editora Tecnoprint Ltdda., sem/data